Mário Sergio Teixeira
Advogado especialista em contratações públicas
A Lei nº 14.133/2021 consolidou avanços importantes no tratamento do Sistema de Registro de Preços (SRP), especialmente ao prever, em seu art. 84, a possibilidade de prorrogação da vigência da Ata de Registro de Preços por igual período, desde que demonstrada a vantajosidade.
Contudo, ainda é objeto de debate jurídico a possibilidade de, com a prorrogação da vigência, haver também a renovação dos quantitativos inicialmente registrados. Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre esse tema, especialmente quando analisado sob a ótica da eficiência, da continuidade do serviço público e das manifestações recentes de órgãos de controle e assessoramento jurídico da Administração Pública.
O Texto Legal e a Interpretação Restritiva
O art. 84 da Lei nº 14.133/2021 dispõe:
“O prazo de vigência da ata de registro de preços será de 1 (um) ano e poderá ser prorrogado, por igual período, desde que comprovado o preço vantajoso.”
Esse dispositivo é claro quanto à possibilidade de prorrogação da vigência, mas não menciona de forma expressa a recomposição dos quantitativos, o que tem levado a diferentes interpretações. No âmbito do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina (TCE/SC), embora a Coordenadoria de Aspectos Jurídicos tenha adotado uma interpretação restritiva, no sentido de que apenas o saldo remanescente da ata poderia ser executado durante o período prorrogado, o órgão ainda não possui posição definitiva sobre o tema em sede de prejulgado. Conforme consta em resposta técnica publicada pelo Tribunal, tramita consulta formal sobre a matéria (Consulta @CON 2500109253), a qual poderá futuramente fixar entendimento
vinculante.
De modo semelhante, o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCE/MG) já se manifestou contrariamente à renovação dos quantitativos, afirmando que:
“No caso de prorrogação do prazo de vigência da ata de registro de preços, nos termos do art. 84 da Lei nº 14.133/2021, não se restabelecem os quantitativos inicialmente fixados na licitação, devendo ser considerado apenas o saldo remanescente.”
Tal posicionamento representa uma leitura estrita da norma, privilegiando a segurança jurídica, mas limitando os potenciais ganhos de eficiência do instrumento. O Entendimento da Advocacia-Geral da União Em contraste com a posição dos tribunais de contas estaduais, a Advocacia-Geral da União (AGU), por meio do Parecer nº 453/2024/CGAQ/SCGP/CGU/AGU, manifestou-se favoravelmente à possibilidade de renovação dos quantitativos iniciais na hipótese de prorrogação da ata de registro de preços. Segundo a manifestação:
“A prorrogação por igual período, autorizada pelo art. 84 da Lei nº 14.133/2021, também permite a renovação do quantitativo originalmente registrado, desde que:
a) haja comprovação de que os preços permanecem vantajosos;
b) exista previsão expressa no edital e na ata;
c) o tema tenha sido tratado na fase de planejamento; e
d) a prorrogação se dê dentro do prazo de vigência da ata.”
A AGU destaca ainda que, se a estimativa de consumo for feita para doze meses — conforme preconizam os arts. 12, §1º e 40 da Lei nº 14.133/2021 —, projetar esse quantitativo para um período maior apenas para manter a utilidade da prorrogação infringe os princípios do planejamento adequado e da anualidade orçamentária.
Eficiência, Qualidade e Continuidade como Fundamentos da Renovação
A possibilidade de replicar os quantitativos na prorrogação de vigência da ata encontra forte respaldo na eficiência administrativa e na continuidade dos serviços públicos. Essa alternativa:
- Evita a deflagração de novo processo licitatório, com os custos administrativos e riscos de descontinuidade daí decorrentes;
- Permite a utilização racional de recursos públicos, garantindo celeridade na entrega de bens e execução de serviços;
- Assegura estabilidade contratual em situações em que a Administração já avaliou positivamente o fornecedor quanto à qualidade e conformidade do objeto.
Conforme ressaltado pela AGU, essa prática é análoga ao que ocorre nos contratos de prestação de serviços contínuos, em que a renovação do prazo também implica a renovação dos quantitativos contratados, desde que mantida a vantajosidade e previsão expressa.
Considerações Finais
A análise conjunta dos fundamentos legais, dos entendimentos doutrinários e das manifestações da AGU conduz à conclusão de que não há vedação legal expressa à renovação dos quantitativos na prorrogação da ARP.
Trata-se de interpretação finalística e sistemática que respeita os princípios da legalidade, eficiência, economicidade e planejamento. Entretanto, diante da divergência de posicionamentos entre os órgãos de assessoramento jurídico e os tribunais de contas estaduais, recomenda-se que a Administração: - Inclua expressamente nos editais e nas atas a possibilidade de renovação dos quantitativos, caso prorrogada a vigência da ARP;
- Planeje adequadamente a contratação, tratando a estimativa como anual e prevendo, desde a fase interna, a eventual necessidade de replicação do quantitativo;
- Comprove a vantajosidade da medida, mediante estudos técnicos e nova pesquisa de preços atualizada.
É importante registrar, por fim, que os tribunais de contas que adotam entendimento restritivo à renovação dos quantitativos registrados deveriam reavaliar suas posições, à luz de uma interpretação sistemática da Lei nº
14.133/2021, especialmente considerando os princípios da eficiência, do planejamento anual, da continuidade do serviço público e da economicidade.
A rigidez interpretativa, embora bem-intencionada, pode acabar por comprometer a efetividade dos instrumentos de gestão pública e gerar retrabalhos que a própria legislação buscou evitar.
Mário Sergio Teixeira é advogado, pós-graduado em Contratações Públicas, ex Secretário de Compras e de Governo em municípios de Santa Catarina, instrutor de cursos na área de licitações e autor de artigos sobre a Nova Lei de Licitações.